sexta-feira, novembro 02, 2018

WHAT ARE YOU RUNNING AWAY FROM

Últimas semanas foram de quilometragens absurdas, que amedrontam pelo mal que podem causar, mas que aliviam e anestesiam.
Cansaço atingindo níveis consideráveis, dores ameaçando surgir, pernas se arrastando, o fôlego sendo exigido até não poder mais, e o pior: o sono capenga, de parcas horas, recheado de pensamentos intrusivos, saudades e remorsos.

São aqueles quilômetros produtos das inquietações e ansiedades gigantescas, cujo efeito é essa insana busca pela estafa, pela exaustão, melhor, pelo esgotamento. Pela miséria sobre o asfalto e a terra, pela dor e o suor, mas sobretudo pelo abençoado e reconfortante resultado posterior: o alívio e a anestesia.

Não é a primeira vez que a corrida serve pra conter um pouco do caminhão de ansiedade que (sobre)carrego. Na realidade, na maioria do tempo, subestimo e acabo não dando o devido crédito ao tanto que esse hábito me ajuda e conforta.
Mesmo sem conseguir traduzir em palavras, cada vez fica mais claro pra mim a resposta para a incontornável pergunta: do que é que eu corro?

quinta-feira, outubro 04, 2018

TIRANIA SOCIAL

...com uma clareza que actualmente parece profética, Mill viu que nem toda a tirania é política, e esta nem sequer é a mais insidiosa porque tem a vantagem comparativa de ser explícita e óbvia; a tirania social é muitíssimo mais difícil de combater precisamente porque começa por ser mais difícil de ver. Por isso, além da protecção contra a tirania política.

É preciso também haver protecção contra a tirania da opinião e sentimento predominantes; contra a tendência da sociedade para impor como regras de conduta, a quem não as aceita, e por outros meios que não as sanções civis, as suas próprias ideias e práticas; para levantar entraves ao desenvolvimento e, se possível, à formação de qualquer individualidade que não se harmonize com os seus modos, e para obrigar todas as índoles a configurar-se segundo o seu próprio modelo.


Trecho desse notável texto de Desidério Murcho no caderno Cultura do Estadão, alicerçado nos escritos de John Stuart Mill.

domingo, maio 06, 2018

DA CULTURA

Numa escala que não me parece difícil identificar, as obras de Shakespeare são mais necessárias que as de Nelson Rodrigues: ambas têm valor, mas as do dramaturgo inglês são conquistas incontornáveis do espírito humano, de grande valia para todos nós, independentemente do espaço e do tempo. É o que se chama “universal”, pois revela e educa constantes da alma humana, e não seus acidentes seculares ou de matiz nacional. Quando Akira Kurosawa faz releituras de peças shakesperianas, traduzindo-as para seu público japonês tão distante culturalmente dos europeus bretões, o faz na intenção de dar a conhecer em língua própria o que de comum sobre o homem disse um estrangeiro. O drama de Rei Lear é mesmo uma hipótese humana transversal.

Daí que os homens e mulheres que se pretendam cultos neste sentido, devem “gastar” a vida na apreensão dessas obras de maior envergadura, que vão de Shakespeare a Platão, de Virgílio a Balzac, de Simone Weil a Van Gogh. Apesar de todo esperneio relativista, são elas a espinha dorsal do cânone universal da cultura. Alguém que tenha passado a vida inteira lendo Paulo Coelho e ouvindo mpb não pode se dizer culto como outro alguém que tenha dominado, mesmo que parcialmente, os elementos formais e materiais do teatro grego antigo. Se o leitor quiser saber a diferença entre o tipo Vinícius de Moraes e o tipo George Steiner, aí está.

Formidável texto do Tiago Amorim no seu A Vida Humana.

terça-feira, maio 01, 2018

UM RETORNO?

O uso de celular e tablet diminuiu brutalmente minha utilização do laptop. Nenhuma novidade, deve ocorrer com uma parcela enorme de pessoas o mesmo. No meu caso, essa diminuição atinge especialmente aquilo que apenas o teclado do computador parece permitir que se atinja: a produção de um texto mais íntimo, uma introspecção textual, aquele flerte do estado emocional no dado momento da escrita com os caracteres digitados.
Meu isolamento, mesmo que inconsciente, na produção de textos, de um post banal a um conto sem sentido, é difícil de encontrar cronologicamente um instante exato em que tenha tido início. Estabelecer comparações com os textos de autores que leio pode intimidar e tornar mais exigente uma produção própria, mas não foi isso. O reconhecimento como mera porcaria da imensa maioria dos textos que havia criado ou escrito até então, poderia igualmente ser o fator desencadeante desse exílio. Acho que também não. Uma resposta que encontrasse algum suporte na (minha) realidade deveria levar em consideração um grau de exigência maior, um gigantesco desânimo de ordem criativa, e variados outros motivos e fatores.
Um modo de vida mais saudável, física e mentalmente, almejado durante a vida toda e colocado em prática de maneira mais rigorosa apenas recentemente, parece ter naturalmente desencadeado um regresso a certas atividades. Dentre as quais um reencontro com o laptop. Com o seu teclado. Com o que apenas com o auxílio dele parece ser possível realizar.
Primeiro de maio. Me parece uma boa ocasião para um retorno.

quarta-feira, janeiro 24, 2018

SEM TÍTULO*

Dizia a todos que não fora ele quem havia escolhido aquele destino. A ordem das coisas, a força motriz, a natureza em si e seu fluxo habitual haviam simplesmente o carregado até ali. Tudo tinha corrido daquela forma pois assim, e só assim, deveria de ser.

Seu jeito tímido e uma demasiada introspecção faziam dele uma pessoa estranha aos olhos dos outros. Não fugia – e nem conseguiria - das sua rédeas: sua personalidade simplesmente não comportava atos explosivos. Mesmo assim mantinha uma vigilância ininterrupta sobre si, ou assim dizia aqueles a quem negava o convite a algum gole de bebida alcoólica, alimentos gordurosos ou por ele considerados danosos ao organismo e qualquer espécie de droga. Não era um pregador anti-tabaco ou um ativista em nome do vegetarianismo, ou mesmo mais um que falava mal da maconha e que saia a dar conselhos "por experiência própria", sabia apenas que a ingestão daquilo derrubaria-o emocionalmente, e que não suportaria o inevitável efeito que aquele infeliz erro inevitavelmente descarregaria sobre si.

Olhava para trás, para aqueles cerca de 10 anos em que passou o que ele mesmo referia-se como Inferno, e por vezes mencionava como brutal o período, em outras apenas falava acerca do aprendizado que acumulou e "bola pra frente". Carregava consigo uma amargura, um ressentimento e descrédito próprio que numa simples conversa de uns cinco minutos já se tornava impossível de esconder. Já fazia muito que tudo estava distante, desde os amigos que um dia foram íntimos até as pessoas que ele não dava valor mas que o queriam bem, achavam-no um cara bacana, inteligente, agradável.

Isolando-se, isolando-se, até que mandou um e-mail para a secretária do chefe, avisando que a tarde não iria aparecer pois tinha de ir ao médico. Enfim "iria para a faca", dizia no corpo da mensagem, referindo-se a uma suposta cirurgia a ser realizada. Verdade ou não, nunca mais voltou ao trabalho ou sequer foi visto.


*Texto encontrado numa pasta antiquíssima do HD externo cujo nome é algo do gênero Em Construção. Troquei uma vírgula, algum ponto, inseri uma palavra ou outra. Não deveria, mas resolvi antes de deletar, publicá-lo.

terça-feira, janeiro 23, 2018

DA SABEDORIA EM ESCUTAR OS MAIS VELHOS

Recém falecido aos 86 anos, Ed Whitlock, lenda dos corredores veteranos, transborda simplicidade e bom senso nessa matéria da Runner's World. Leitura extremamente recomendada, negritos por minha conta. Impossível concordar mais:

I do what not to do to an extreme. I go out jogging. It's not fast running, just that I do it for a long time. I don't follow what typical coaches say about serious runners. No physios, ice baths, massages, tempo runs, heart rate monitors. I have no strong objection to any of that, but I'm not sufficiently organized or ambitious to do all the things you're supposed to do if you're serious. The more time you spend fiddlediddling with this and that, the less time there is to run or waste time in other ways.

Running should be a pastime. All sports should be a pastime. There shouldn't be all this professional stuff.

terça-feira, janeiro 02, 2018

OS MELHORES DO ANO, OU O MÁXIMO QUE EU CONSEGUI ME LEMBRAR

Admito que gosto de criar pequenas listas identificando o que de melhor foi lido/ouvido/visto ao longo do ano. Nessa época costumo ainda ler algumas de sites que tenho certa estima na esperança de ser apresentado há algo interessante que tenha passado desapercebido. Na vã esperança de realizar algo similar, dessa vez, antes mesmo de começar a digitar o post, sabia que a memória não teria muito com o que colaborar.

Na literatura, li bastante coisa no kindle, li menos em comparação no papel, mas não houve nenhuma leitura tão significativa que a tornasse a Melhor do Ano ao ponto de nesse momento identifica-la mentalmente. Além disso, muitos insones momentos noturnos foram preenchidos pelo kindle salvador e a memória poderia muito bem trair a ideia de que algo que eu havia lido no inicio do ano na realidade não fizesse parte de meados de 2016 ou até antes. Difícil estabelecer a cronologia correta. Em todo caso, meu grande feito literário desse 2017 que se foi não resta nenhuma dúvida: na segunda tentativa após anos da fracassada primeira, terminei Crime e Castigo. Nova tradução e a boa edição da Editora 34 ajudaram demais na empreitada. Já, meu livro do ano foi de Elena Ferrante. Seu Dias de Abandono rendeu sugestões minhas para que pessoas próximas o lessem, rendeu muito trechos sublinhados, rendeu significativa imersão na abandonada e ferida personagem, rendeu outros livros lidos na sequencia da mesma autora e foi a mais recompensadora leitura desse ano.

Na música, sigo tendo a fiel companhia do meu mui selecionado feed do Mixcloud e da Swiss Classic no Tune In. Por isso não sofri com mais um ano onde a quantidade de álbuns interessantes que ouvi seguiu, conforme o ano anterior, em franco declínio. Todavia, o Arcade Fire lançou o delicioso Everything Now que durante incontáveis vezes foi a minha trilha sonora enquanto descia ou subia a serra, seja pelo sinuoso caminho de asfalto, seja pelo infernal mix de chão batido com cascalho. Bem diferente em estilo e atmosfera ao primeiro e já clássico Funeral. Tão bom quanto.

A série do ano foi indiscutível: Twin Peaks The Return.
Que experiência gratificante foi essa. Pra possibilitar a compreensão necessária da história, tive de ir atrás das 2 primeiras temporadas de 20 e poucos anos atrás, sendo arremessado a uma miscelânea de personagens, tramas, ambientes e situações tão formidavelmente incomuns que não houve como deixar de concluir o enorme número de episódios em um período de tempo recorde. Mesmo o nonsense profundo demais de alguns trechos não tiraram o brilho desse magnum opus Lynchiano.

Um ano de séries, não um ano de filmes. Não devo ter assistido um número tão pequeno desde muito, muito tempo atrás. Conforme a situação da literatura, não é fácil assinalar O Filme de 2017 em letras maiúsculas sem antes chafurdar um pouco na memória. Feito isso, e com um leve empurrãozinho do google, lembrei da atuação fantástica de Jeff Bridges e do seu formidável Hell or High Water que consigo com convicção plena eleger como a grande obra assistida em 2017.